A Maria passa a vida a dizer que eu nunca lhe conto histórias de quando era jovem, que as amigas têm sempre para contar mais peripécias dos seus entes que ela. Confesso que normalmente recorro a clichés para contornar a situação, não obstante a consciência de que ela já não acata muito com as minhas desculpas. E é a partir de situações como esta que, ultimamente, eu me tenho questionado porque razão me custa tanto lembrar as minhas aventuras da mocidade.
Ontem, apanhei-a a bisbilhotar uma velha caixinha de fotografias e objectos antigos. Irritei-me e ordenei que parasse imediatamente de fazer aquilo. Tarde demais. Ela já tinha na mão uma fotografia da minha última Queima das Fitas. Uma fotografia onde estava eu e os meus amigos quase todos. Quando reparei bem na fotografia, as mãos começaram a tremer e uma nostalgia escorreu-se-me pelo corpo inteiro. Caíram-me logo duas lágrimas pelo rosto, e não consegui sequer olhar a Maria nos olhos. Ela percebera naquele momento que não era fácil para mim voltar aquele tempo, e recordar o que, porventura, se tinha ido embora para sempre da minha vida. Na verdade, ela quase não reconhecia ninguém naquela fotografia. Daí ter soltado a tímida pergunta de quem eram aquelas pessoas. Hesitei a responder, mas quando abri a boca para falar, ela não mais se mexeu e falou.
O que lhe disse foi: "Sabes Maria, vai certamente chegar uma altura na tua vida em que terás a oportunidade de viver tudo de uma forma parecida com aquela que te vou contar. Não precisarás de ser mais ou menos que ninguém, bastará teres sentimentos, bastará teres coração. Vais precisar de saber falar e de saber calar, sobretudo de saber ouvir. Terás que gostar de viver, da Faculdade, dos amigos que lá tens, daquilo que lá fazes, das tradições que lá existem e lá se fazem e se criam e se perpetuam, das canções que lá se tocam e lá se cantam, dos eventos que lá existem. E se não gostares, porventura, de alguma destas coisas ou de uma outra que não referi, terás de aprender a viver com isso. Porque até mesmo essas coisas vão fazer de ti uma melhor pessoa, mais capaz e mais sábia. Aprenderás coisas que não se aprendem em lugar nenhum, em aula nenhuma e com ninguém. Porque são coisas que se aprendem exactamente da forma como aprendes aquilo que, eventualmente, é suposto aprenderes. Possivelmente, parecer-te-á tudo muito confuso e pensarás, quiçá que eu te estou a contar uma grande treta. Oxalá chegue também a tua hora de viveres algo parecido, e todas estas palavras não te pareçam roubadas de um romance ou filme qualquer. Sentirás um grande amor, um grande amor por alguém, por outrem, ou por uma qualquer outra coisa, ou então sentirás falta de não ter esse amor que te falo. Deverás amar a forma como vives e encaras as coisas, e respeitar também a forma como os que estão à tua volta vivem e pensam. Esses tempos são a lição que cada qual aprende à sua maneira, da forma que quiser e bem entender. É a lição que te molda o carácter, a personalidade e os teus valores. E é com isso que enfrentarás o resto da tua vida. E, juro-te, nunca haverão duas pessoas a aprender a lição exactamente da mesma forma. Porque as pessoas não são figuras geométricas, e muito menos as suas relações são Teoremas de Pitágoras.
Não é preciso que percebas isso à primeira, nem é imprescindível que seja logo à segunda. Poderás enganar-te, pois todos se enganarão. E os que não se enganarem, enganar-se-ão por acreditarem nisso. Não é preciso seres a melhor, nem é preocupante seres a pior. Se calhar, o que mais importa é não seres igual a ninguém. É não seres vulgar. E todo aquele que o não é, é-lo por ser genuíno. Deverás ter ideais, e seres um tanto ou quanto fundamentalista naquilo em que acreditas. Medo só deverá entrar em ti se o puseres em causa. Grosso modo, o que importa é viveres alicerçado nos teus pilares, dando o melhor de ti em tudo aquilo que vives e em tudo aquilo que gostas de viver. Caso assim não seja, irás sentir um grande vácuo em teu redor. E, mais cedo ou mais tarde, irás lamentar-te por isso. A tua maior preocupação deverá ser em saberes ser amiga. Amiga do teu amigo. E quando não o souberes ser, deverás perceber isso, tão tarde quanto for, e corrigi-lo no dia seguinte.
Vais conhecer e ter amigos para gostar das mesmas coisas que tu, que se comovem com as mesmas coisas em que tu te comoves, que se divertem com as mesmas aventuras em que tu te divertes. Não vais ter medo de conversar de coisas simples, de vergonhas antigas, de problemas pessoais e das tuas recordações de infância. Vais precisar deles para não dares em louca em momentos difíceis, para contares o quão bem e mal te safaste nos exames, bem como os teus maiores anseios e sonhos.
A ti, eles ensinar-te-ão tudo. Não porque o saberão, mas porque viverão contigo muitas histórias. Histórias, essas que te vão ensinar a olhar para as coisas. Que te vão mostrar o quão bonito é viver determinadas coisas, quando as temos nas mãos e olhamos devagar para elas. Esta parte já te tinha mostrado no outro dia, não já? Quando te mostrei que o valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas sim na intensidade com que acontecem. Momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis. Está tudo aqui. Sabes Maria, tudo viveu, mudou e passou. Tudo quanto resta disso está espalhado no tempo, na memória e no coração. A vida furta-se a si própria à medida que evolui no tempo, e é por isso que hoje não somos a mesma coisa que éramos ontem, nem tão pouco o que seremos amanhã. Talvez um dia ganhe coragem para particularizar mais um bocadinho…"
Estou convencido de que ela não entendeu metade do que lhe tentei dizer.
Parabéns pelas suas palavras, são bastante emotivas e avivaram-me certas memórias da mocidade enquanto estudante da mui nobre Faculdade de Direito de Coimbra, memórias já algo ofuscadas pelo inexorável passar dos anos.
ResponderEliminarContinue saudosista e nostálgico, porque, independentemente de tudo o que se possa dizer, a melancolia, se for bem doseada, só faz de nós
melhores pessoas.
Abraço,
Escrevinhador,
interjeicoes.blogspot.com